sexta-feira, 1 de abril de 2011

TREINO PARA A MORTE


Treino para a Morte

Preocupado com a sobrevivência além do túmulo, você pergunta, espantado, como deveria ser levado a efeito o treinamento de um homem para as surpresas da morte.

A indagação é curiosa e realmente dá o que pensar.

Creia, contudo, que, por enquanto, não é muito fácil preparar tecnicamente um companheiro à frente da peregrinação infalível.

Os turistas que procedem da Ásia ou da Europa habilitam futuros viajantes com eficiência, por lhes não faltarem os termos analógicos necessários. Mas nós, os desencarnados, esbarramos com obstáculos quase intransponíveis.

A rigor, a Religião deve orientar realizações do espírito, assim como a Ciência dirige todos os assuntos pertinentes à vida material. Entretanto, a Religião, até certo ponto, permanece jungida ao superficialismo do sacerdócio, sem tocar a profundeza da alma.

Importa considerar também que a sua consulta, ao invés de ser encaminhada a grandes teólogos da Terra, hoje domiciliados na Espiritualidade, foi endereçada justamente a mim, pobre noticiarista sem méritos para tratar de semelhante inquirição.

Pode acreditar que não obstante achar-me aqui de novo, há quase vinte anos de contado, sinto-me ainda no assombro de um xavante, repentinamente trazido da selva matogrossense para alguma de nossas Universidades, com a obrigação de filiar-se, de inopino, aos mais elevados estudos e às mais complicadas disciplinas.

Em razão disso, não posso reportar-me senão ao meu próprio ponto de vista, com as deficiências do selvagem surpreendido junto à coroa da Civilização.

Preliminarmente, admito deva referir-me aos nossos antigos maus hábitos. A cristalização deles, aqui, é uma praga tiranizante.

Comece a renovação de seus costumes pelo prato de cada dia. Diminua gradativamente a volúpia de comer carne dos animais. O cemitério na barriga é um tormento, depois da grande transição. O lombo de porco ou o bife de vitela, temperados com sal e pimenta, não nos situam muito distantes dos nosso antepassados, os tamoios e o ciapós, que se devoravam uns aos outros.

Os excitantes largamente ingeridos constituem outra perigosa obsessão. Tenho visto muitas almas de origem aparentemente primorosa, dispostas a trocar o próprio Céu pelo uísque aristocrático ou pela nossa cachaça brasileira.

Tanto quanto lhe seja possível, evite os abusos do fumo. Infunde pena a angústia dos desencarnados amantes da nicotina.

Não se renda à tentação dos narcóticos. Por mais aflitivas lhe pareçam as crises do estágio no corpo, agüente firme os golpes da luta. As vítimas da cocaína, da morfina e dos barbitúricos demoram-se largo tempo na cela escura da sede e da inércia.

E o sexo? Guarde cuidado na preservação do seu equilíbrio emotivo. Temos muita gente boa carregando consigo o inferno rotulado de "amor".

Se você possui algum dinheiro ou detém alguma posse terrestre, não adie doações, caso esteja realmente inclinado a fazê-las. Grandes homens, que admirávamos no mundo pela habilidade e poder com que concretizavam importantes negócios, aparecem, junto de nós, em muitas ocasiões, à maneira de crianças desesperadas por não mais conseguirem manobrar os talões de cheque.

Em família, observe a cautela com testamentos. As doenças fulminatórias chegam de assalto, e, se a sua papelada não estiver em ordem, você padecerá muitas humilhações, através de tribunais e cartórios.

Sobretudo, não se apegue demasiado aos laços consangüíneos. Ame sua esposa, seus filhos e seus parentes com moderação, na certeza de que, um dia, você estará ausente deles e de que, por isso mesmo, agirão quase sempre em desacordo com a sua vontade, embora lhe respeitem a memória. Não se esqueça de que, no estado presente da educação terrestre, se alguns afeiçoados lhe registrarem a presença extraterrena, depois dos funerais, na certa intimá-lo-ão a descer aos infernos, receando-lhe a volta inoportuna.

Se você possui o tesouro de uma fé religiosa, viva de acordo com os preceitos que abraça. É horrível a responsabilidade moral de quem já conhece o caminho, sem equilibrar-se dentro dele.

Faça o bem que puder, sem a preocupação de satisfazer a todos. Convença-se de que se você não experimenta simpatia por determinadas criaturas, há muita gente que suporta você com muito esforço.

Por essa razão, em qualquer circunstância, conserve o seu nobre sorriso.

Trabalhe sempre, trabalhe sem cessar.

O serviço é o melhor dissolvente de nossas mágoas.

Ajude-se, através do leal cumprimento de seus deveres.

Quanto ao mais, não se canse nem indague em excesso, porque, com mais tempo ou menos tempo, a morte lhe oferecerá o seu cartão de visita, impondo-lhe ao conhecimento tudo aquilo que, por agora, não lhe posso dizer.

Cópia integral do Capítulo 4 (Treino para a Morte) do livro Cartas e Crônicas, de Francisco Cândido Xavier, pelo Espírito Irmão X. Rio de Janeiro: FEB, 1974.

Texto original em: http://duplavista.com.br/arquivo/treino-para-a-morte

Observação: Irmão X é o apelido usado pelo Espírito Humberto de Campos, eminente escritor brasileiro cujo nome completo era Humberto de Campos Veras. Em 1944, por meio de uma ação declaratória, familiares de Humberto de Campos processaram Chico Xavier e a Federação Espírita Brasileira (FEB). Pediam que a Justiça examinasse a hipótese espírita e declarasse se o autor dos cinco livros atribuídos ao Espírito de Humberto de Campos era ou não o próprio escritor maranhense após sua morte. E mais: se a conclusão fosse negativa, solicitavam as devidas punições aos responsáveis pelos livros; se positiva, requeriam direitos autorais. O juiz, porém, como era de se esperar, rejeitou a ação, considerada sem cabimento, pelos seguintes motivos: 1º: ao morrer, o indivíduo deixa de possuir direitos civis, de modo que, morto, Humberto de Campos não poderia readquiri-los; 2º: os direitos autorais herdáveis limitam-se aos referentes às obras do escritor produzidas antes de sua morte; 3º: uma ação declaratória deve requerer a simples declaração de existência ou inexistência de uma relação jurídica, e não a existência ou não de um fato. Em síntese, a ação foi interpretada como uma mera consulta, função que não cabe ao Poder Judiciário. A família do escritor recorreu da decisão, mas, no mesmo ano, a Justiça reafirmou a impropriedade da ação. No entanto, por causa do processo, o nome Humberto de Campos, em textos mediúnicos posteriores, foi substituído por Irmão X.

Um comentário:

  1. Como sempre Humberto de Campos é excelente!
    É muito importante estarmos preparados todos os dias para o desencarne. Já ouvi dizer que todas as noites, quando nos deitamos, estamos nos preparando para morrer. Será que se eu não acordar amanhã estarei pronto pra deixar tudo que amo? Será que me desligarei facilmente da vida e dos hábitos corpóreos?
    Muito bom o post, parabéns!

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